“Teremos sempre Paris”, diz um decidido Humphrey Bogart à bela, mas resignada, Ingrid Bergman, no filme Casablanca. Bogart, sábio, sabia que a Cidade das Luzes traria conforto a Bergman. Há locais, objetos e memórias que nos levam de volta aos momentos bons, onde sabemos que seremos sempre felizes. No mundo cervejeiro, esta zona de conforto são os estilos, os aromas e os sabores das quatro culturas que dominam o passado e o presente da bebida: a belga, a alemã, a inglesa e a norte-americana.
No entanto, é normal que algo em nós procure novos paladares e experiências sensoriais. Quem sabe se, na incerteza e no desconhecido, encontraremos um novo caminho? Neste artigo, vamos falar-te de quatro novos países que estão a dar cartas na inovação cervejeira.
Entrará alguma destas culturas no grupo restrito de potências cervejeiras? Só o tempo dirá. De qualquer modo, se o cardápio que aqui te revelamos não for do teu agrado, terás sempre Paris, que é como quem diz, a zona de conforto dos estilos belgas, alemães, ingleses ou norte-americanos.
Há dez anos que o país que viu nascer Morton Coutts, o pai da fermentação contínua, se destaca no panorama cervejeiro mundial. De acordo com a consultora Business and Economic Research, o boom do mercado cervejeiro neozelandês teve como pano de fundo a mudança dos hábitos dos consumidores, que passaram a estar receptivos a experimentar novos estilos de cerveja, desenvolvidos com ingredientes locais.
Este movimento foi essencial para que as marcas começassem a investir em inovação. Para teres uma ideia do que estamos a falar, fica a saber que, entre 2012 e 2022, o número de cervejas disponibilizadas no mercado neozelandês quadruplicou. Uma das tendências deste mercado é a procura por cervejas sem álcool ou com pouco teor alcoólico (até 1,15%). Entre 2020 e 2022, este segmento aumentou sete vezes.
Para o crescimento da cultura cervejeira neozelandesa contribuiu, também, a multiplicação de espaços dedicados à cerveja, hubs criativos em que várias microcervejeiras coexistem, partilham conhecimento e promovem momentos de convívio e cultura.
Estes hubs, maioritariamente urbanos, recebem milhares de neozelandeses por ano, mas também turistas rendidos às cervejas kiwis. Aqui, conversa-se sobre as técnicas de fabrico da cerveja, a origem dos ingredientes, a ligação aos produtores locais e a sustentabilidade do modelo de negócio.
A inovação e a partilha de ideias ajudaram a criar um nicho de mercado interno, suportado por empreendedores. A criatividade está em alta e os produtores locais, por exemplo de lúpulo, já são procurados por marcas internacionais.
Nem todas as cervejas terão qualidade para resistir ao teste do tempo, mas muita fá-lo-ão. Os mestres cervejeiros ganharão experiência e, de tempos a tempos, introduzirão novas receitas no mercado. Foi assim que as principais culturas cervejeiras ganharam o seu espaço nesta indústria. Será assim, também, com a cultura neozelandesa?
Marcas em alta
8 Wired, Bootleg, Martinborough, Otago Brew School
Curiosidade
Em 2021, o festival Beervana atraiu 16 mil amantes de cerveja a Wellington, capital da Nova Zelândia.
O filósofo Friedrich Nietzsche inspirou-se em Heráclito, e na ideia do “eterno devir”, para defender que o mundo é um “eterno ciclo, sempre existiu. Ao fim segue-se o início, eternamente”. A frase de Nietzsche, que nasceu e viveu em Röcken (atual Alemanha), ensanduichado entre as culturas cervejeiras alemã, belga e checa, encaixa que nem uma luva ao mercado cervejeiro chinês.
Isto porque esta enorme massa de terra continental, à qual hoje chamamos China, foi em tempos um dos berços da bebida que adoramos. Acredita-se que há pelo menos 7000 anos que os chineses bebem cerveja. Ainda assim, a bebida perdeu importância para o vinho de arroz, após a dinastia Han (202 a.C. a 220 d.C.), tendo sido reintroduzida na sociedade chinesa apenas no século XIX.
Fast forward para 2002. Neste ano, a China passou a ser um dos maiores mercados de cerveja do mundo. O que, de resto, se compreende, uma vez que todos os produtos que caem nos gostos dos chineses arriscam-se a sê-lo. No entanto, por detrás destes números existe, a borbulhar, uma nova cultura que privilegia as cervejas premium e artesanais, com os seus diversos estilos, sabores e ingredientes.
Há dois fatores que têm contribuído para este crescimento. Por um lado, o aumento do investimento das cervejeiras estrangeiras na China e o consequente maior interesse da população pelo produto. Por outro, o regresso de empreendedores chineses ao País na segunda metade da década de 2010. Com as suas novas ideias e conhecimentos da indústria, estes mestres cervejeiros estão a transformar um nicho de mercado numa cultura mainstream, aproveitando a maior disponibilidade financeira dos jovens para dar a conhecer novos estilos, ingredientes locais e cervejas marcadas pela inovação.
Em parte, a indústria aproveitou-se da clara mudança no perfil dos consumidores. Por exemplo, e tal como noutros mercados asiáticos, cada vez mais mulheres sentem-se atraídas pela bebida, privilegiando os estilos menos alcoólicos e as Fruit Beer.
Dez anos após o início da revolução, os números falam por si. Hoje, existem mais de 13 000 cervejeiras que inovam na procura de novos sabores e produtos de qualidade, fazendo da China um dos lugares mais vibrantes para a indústria.
Fruto deste ambiente, as marcas chinesas começam a ser reconhecidas em competições internacionais. Em 2022, pela primeira vez, o País viu duas cervejas serem premiadas no World Beer Cup: uma Fruit Beer da Mehanine e uma Sweet Stout da Trueman.
Marcas em alta
Tsingtao, Yanjing, Chong Qing, Zhujiang, Snow
Curiosidade
Xing Lei, o fundador da Trueman Brewing, diz que 70% dos seus clientes são mulheres.
A cerveja faz parte da vida dos australianos desde que o explorador James Cook desembarcou na ilha-continente, em 1770. A bebida contribui decisivamente, inclusive, para o ambiente descontraído e relaxado que é comum entre os australianos.
Nos últimos anos, porém, o mercado cervejeiro mudou. Os consumidores tornaram-se mais exigentes e, a exemplo do que aconteceu na Nova Zelândia ou na China, mais despertos para experimentar novos estilos e sabores. Até o consumo de cervejas com pouco ou até nenhum teor alcoólico está em ascensão no país.
Neste contexto, há quem diga que o mercado australiano criou um novo segmento: a cerveja contemporânea. Trata-se de uma bebida moderna, lançada pelos maiores grupos cervejeiros para chegar aos novos consumidores. Ou seja, pessoas que querem cervejas refrescantes e com diferentes sabores, por exemplo frutados, que se preocupam com a saúde — muitas delas são abstémias — mas também com a sustentabilidade e o modo como os ingredientes refletem a oferta local e regional.
Com preços competitivos em relação às marcas mais vendidas e, assim, mais em conta que as cervejas artesanais, as cervejas contemporâneas foram um sucesso imediato junto da população australiana. E não só. Algumas marcas começaram já a conquistar os mercados asiáticos e a influenciar os paladares noutros países. Será que a nova cultura cervejeira virá down under?
Marcas em alta
Great Northern, Carlton, XXXX, Iron Jack, Furphy, Frothy, Matilda Bay, Aussie Wheat Beer.
Curiosidade
O segmento das “cervejas contemporâneas” criou novas oportunidades de turismo gastronómico para Victoria e da Tasmânia, regiões produtoras de lúpulo e cevada.
Nos últimos anos, os canadianos têm bebido menos cerveja, mas uma maior variedade de estilos. Confuso? Nem por isso. Se o primeiro facto ocorreu naturalmente, fruto do aparecimento de uma nova geração de consumidores, o segundo deveu-se à inovação com que as cervejeiras recriam estilos clássicos com novos ingredientes.
Basta ver o corredor das cervejas no supermercado para perceber o crescimento das cervejas artesanais no Canadá. Novas marcas competem diretamente com os grandes players do mercado, todos a tentar fidelizar um consumidor que tem diferentes necessidades que o consumidor dos anos 1960, dos anos 1980 ou até dos anos 2000.
A revolução da cerveja artesanal chega, sobretudo, a um público urbano, com preocupações de saúde. E às mulheres. Hoje, mais de 1 100 cervejeiros operam no Canadá e o número cresce todos os anos. Uma maior diversidade leva a mais inovação, como comprovam os 14 prémios que o país arrecadou nas edições de 2023 da World Cup Beer.
No Canadá, há quem diga que a cerveja artesanal cresceu tanto que se tornou mainstream, que é como quem diz, de massas. O cenário, apraz dizer, tem semelhanças com a própria ascensão da cerveja artesanal nos Estados Unidos que, a partir dos anos 1980, trouxe consigo um fluxo de inovação e de redescoberta de estilos clássicos europeus, desenvolvidos, agora, com ingredientes locais.
É que, tal como aconteceu há 40 anos nos Estados Unidos, também no Canadá a cerveja é cada vez mais sinónimo de cultura, de urbanismo, de descoberta de uma nova forma de convívio. A proximidade entre os dois países explicará muito deste movimento, mas a própria história do Canadá, país dividido entre a cerveja inglesa e o vinho francês e onde cresceram grandes marcas como a Molson ou a Labatt, contribuiu, certamente, para esta nova forma de viver a bebida.
Marcas em alta
Sooke, Red Racer, 33 Acres, Old Jalopy, Anne Bonny
Curiosidade
Em 2019, para impulsionar o consumo de cerveja nacional, foi criado o Canadian Beer Day. Nessa data, o país mergulha na cultura cervejeira: os restaurantes, cafés e bares reforçam o seu portfólio, as fábricas abrem as portas aos consumidores e as cidades celebram o convívio que só a indústria da cerveja consegue promover.
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