Spoiler alert: a cerveja Gueuze é um blend de diferentes Lambic. A partir deste dado, percebe-se por que as semelhanças entre ambas são obrigatórias. No entanto, nunca na História um filho nasceu igual ao pai e o mesmo acontece na procriação cervejeira.
Neste artigo, ficarás a saber por que razão a supercentenária Lambic e a refinada Gueuze se tornaram grandes símbolos da singularidade belga no universo cervejeiro.
Não se sabe ao certo o ano de nascimento da cerveja Lambic. O seu caráter bravio e a fermentação espontânea de que deriva indiciam que terá sido uma das primeiras cervejas a surgir na Europa. Tal como acontecia na produção cervejeira da Suméria no ano 3000 a.C., também a Lambic é uma bebida que obedece às leis da natureza, desviando o homem para segundo plano.
A História conta que, à chegada do imperador romano Júlio César ao território a que hoje chamamos Bélgica, este terá ficado impressionado com o cultivo imenso de cereais e com o culto à cerveja – tão distinto da cultura vínica dos povos mediterrânicos. Os belgas terão incorporado, desde então, os conhecimentos romanos sobre o vinho na sua forma de fazer cerveja, dando-lhe uma identidade única.
Embora não existam registos dessa época, alguns estudiosos apontam para a forte possibilidade de César ter bebido cervejas muito semelhantes à Lambic, apenas existentes na região de Pajottenland, na Flandres. Isto porque a Lambic é uma cerveja de fermentação espontânea, ou seja, que surge da exposição direta às leveduras e microrganismos locais, neste caso, autóctones do vale do rio Zenne.
Não sendo a história comprovada, o certo é que a Lambic existe pelo menos desde o século XIII. No entanto, até ao final de 1800, a Lambic engarrafada era rara, dado o seu carácter rebelde e imprevisível: muitas vezes, a fermentação não controlada resultava na explosão das garrafas.
Apenas no século XIX o mundo veria nascer a primogénita Gueuze, uma cerveja que resulta da mistura (blend) de Lambic envelhecidas e jovens. Já no interior da garrafa, dá-se uma nova fermentação (tal como acontece com o champanhe, uma das razões pela qual a Gueuze é conhecida como a “champanhe das cervejas”). A produção comercial da Gueuze iniciou-se no século XIX, com a sua primeira grande aparição pública a acontecer em 1897, na Feira Mundial de Bruxelas.
A Primeira Guerra Mundial teve um grande impacto na indústria cervejeira e os microprodutores belgas não escaparam ao abalo. A partir de 1914, as forças ocupantes confiscaram equipamentos de fabrico, obrigaram mestres a adotar o estilo alemão e destruíram cervejarias. Começaram, então, a surgir cervejas menos refinadas e o par Lambic-Gueuze foi praticamente esquecido. Quem beberia a “champanhe das cervejas” em tempos de guerra?
Chegada a paz, voltou a vontade de celebrar e a Lambic emergiu do ocaso. No entanto, em 1939, o mundo conhecia um novo buraco negro e o universo Lambic voltava a cair em crise. Apenas no segundo pós-guerra se deu o seu ressurgimento, numa versão adoçada – impulsionada belo boom do consumo de refrigerantes – que tentava seduzir a população.
Na década de 1950, em pleno florescimento da cultura de cafés europeia, os “bares de Lambic” tornaram-se pontos de encontro das classes médias e altas de Bruxelas e arredores, mostrando a vivacidade deste estilo de cerveja, como se relata em Les mémoires de Jef Lambic, um livro que é uma ode ao humor belga e ao néctar de trigo e cevada.
Até aos dias de hoje, as Lambic e as Gueuze foram bebendo dos avanços da técnica, assistindo à incorporação do lúpulo e de novos aromas. No entanto, o seu espírito espontâneo mantém-se e estas cervejas continuam a proporcionar experiências únicas.
No copo
Uma das maiores diferenças entre a Lambic e a Gueuze é a elevada carbonatação desta última, derivada da segunda fermentação (no interior da garrafa) a que é sujeita. Assim, ao olho, a espuma poderá ajudar-te a perceber se estás a beber uma Lambic ou uma Gueuze – a alta carbonatação da Gueuze dá origem a uma espuma mais espessa, cremosa e persistente.
De resto, a Lambic original é, por norma, uma cerveja entre o amarelo-palha e o dourado, enquanto a Gueuze se pinta de um tom âmbar. Ambas podem apresentar-se ligeiramente turvas, sendo que as Lambic mais velhas são as mais cristalinas. Recomenda-se, nos dois casos, que não sejam servidas a temperaturas demasiado baixas (o ideal é entre 6°C e 12°C).
A Lambic é uma cerveja complexa, com um amargor pronunciado e uma acidez final bem marcada. As Lambic mais velhas, ainda assim, mostram-se mais redondas e suaves do que as jovens. Estas últimas são, por norma, refrescantes e secas, quase ao jeito de um aperitivo.
A maturação das Lambic em barris poderá trazer ao palato notas de madeira, limão, toranja, aromas florais, feno ou mesmo mel. O leque é vasto. Dado que qualquer Gueuze precisa sempre de “beber” a diferentes Lambic, encontrar as diferenças entre os dois estilos poderá, assim, parecer uma missão impossível, mas é precisamente isso que torna a tarefa estimulante.
Outra diferença entre a Lambic e a Gueuze poderá estar no teor alcóolico. Enquanto o volume da primeira pode variar entre 4,5% e 6% de álcool, a mais nova pode ir dos 5% aos 8%.
Enquanto a antiguidade e a espontaneidade da Lambic remetem para os conceitos basilares da cerveja e, por isso, para uma experiência autêntica, a Gueuze é o parente refinado que te fará entrar no imaginário dos vinhos e das cidras sem ter de sair do mundo da cerveja. Muitas das Gueuze são, aliás, servidas em garrafas semelhantes às de champanhe.
Se preferes uma experiência profunda e sabores difíceis de descodificar, experimenta uma Lambic e descobre nas notas de carvalho e no seu fundo selvagem uma possível história da cerveja. Se procuras um momento vívido e festivo, que preserva um fundo rústico, aposta numa Gueuze. Explorar a cultura cervejeira belga sem passar por estes dois estilos é como cometer uma heresia.
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